Manganês e glifosato: uma história de fortes interações, mas nem tanto assim.
Interação entre fertilizantes foliares e herbicidas
A aplicação de fertilizantes foliares em conjunto herbicida sobre uma cultura agrícola é uma prática bastante comum em lavouras de soja resistentes ao glifosato.
Conhecidas também como “RR” (Roundup Ready), as cultivares resistentes ao glifosato são comercializadas no Brasil desde 2003, e representam hoje mais de 95% de toda a área de soja plantada no país. O sucesso desta tecnologia está no controle facilitado de plantas daninhas, pois ela possibilitou que o glifosato, que é um herbicida pós emergente de amplo espectro, fosse aplicado em área total e pós emergências, sem comprometer o desenvolvimento da cultura.
A possibilidade de aplicar o glifosato sobre a soja permitiu o aproveitamento desta operação para fornecer em conjunto micronutrientes via foliar para a cultura, o que é uma prática interessante para reduzir custos operacionais. No entanto, para atingir este objetivo é preciso conhecer algumas peculiaridades sobre este assunto.
Dentre os micronutrientes, o manganês (Mn) é o mais comum em misturas com glifosato, e talvez o mais polêmico. A aplicação de Mn é pratica comum nos campos de soja RR, isso porque há algumas hipóteses bastante difundidas que sustentam interações indesejadas com o glifosato, desde a mistura no tanque de pulverização, passando pelo meio intracelular, e chegando até à rizosfera das plantas que recebem a aplicação.
A seguir, iremos discutir melhor sobre estas hipóteses e desmistificá-las com base em novos resultados de pesquisa sobre o assunto.
O que há entre o Manganês e o glifosato?
Tudo começou com a observação de um amarelecimento temporário em folhas de soja RR emergidas logo após a aplicação do glifosato. Este sintoma se mostrou temporário por se reverter entre 14 a 21 dias após o aparecimento, e ficou popularmente conhecido como yellow flashing, sendo observado em lavouras nos Estados Unidos e no Brasil. Por ser semelhante aos sintomas de deficiência de Mn, levantou-se a hipótese de que a aplicação de glifosato estivesse indisponibilizando e/ou interferindo no metabolismo do Mn pela planta.
Esta hipótese foi considerada porque o glifosato, antes de se tornar o principal herbicida da história, foi desenvolvido e patenteado, em 1964, como um agente quelante, devido à sua capacidade de complexar cátions di e trivalentes. Sendo o Mn absorvido pelas plantas na forma divalente (Mn2+), considerou-se a possibilidade de o glifosato estar complexando-o no interior das células, indisponibilizando-o para cumprir suas funções no metabolismo da planta.
Desmistificando a hipótese da complexação intracelular
De fato, o glifosato é capaz de complexar átomos de Mn2+ em soluções aquosas, como veremos com mais detalhes nos próximos tópicos, no entanto, a complexação do Mn intracelular nunca foi comprovada, pelo contrário, trabalhos de pesquisa mostram evidências que refutam esta hipótese (BOTT et al., 2008; MACHADO et al., 2019).
O Laboratório de Instrumentação Nuclear, coordenado pelo Prof. Hudson de Carvalho no Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA/USP), publicou resultados de um experimento analisado no Laboratório Nacional de Luz Sincrotron que, utilizando raios-x, mostrou que o Mn aplicado via foliar, em conjunto com o glifosato, não é transportado de forma complexada, como vimos na Figura 1 (MACHADO et al., 2019).
Não há evidências que comprovem a complexação intracelular do Mn pelo glifosato, mas, embora não seja uma regra, o yellow flashing é um problema visto no campo em algumas situações, como no caso de aplicações de altas doses de glifosato, realizadas sob condições (calor e umidade) que promovam o rápido desenvolvimento da soja.
O que causa o yellow flashing?
A maior parte do glifosato absorvido é transportado para tecidos meristemáticos. Algumas frações também podem ser exsudadas pelas raízes ou metabolizadas pela planta, sendo o AMPA (ácido aminometilfosfônico) o primeiro e principal metabólito formado a partir da sua degradação, conforme esquematizado na figura 2.
Estudos mostraram que o aparecimento do yellow flashing é na verdade uma resposta das cultivares RR à toxicidade ao AMPA, que é uma substância que se mostrou capaz de reduzir o conteúdo de clorofila nas folhas (DING et al., 2011; REDDY; RIMANDO; DUKE, 2004), razão pela qual se dá o amarelecimento. O AMPA é posteriormente metabolizado pela planta e sua concentração nas folhas é significativamente reduzida, em média, 22 dias após a aplicação, o que coincide com o momento em que os sintomas do yellow flashing são atenuados.
Por que aplicamos o Mn junto com o glifosato?
Como vimos, a complexação do Mn intracelular pelo glifosato não é a causa do yellow flashing, por isso, se a sua aplicação é feita apenas com o objetivo de compensar possíveis efeitos negativos do glifosato sobre o seu aproveitamento pela soja, então ela é feita pelo motivo errado.
No entanto, embora o glifosato não interfira no metabolismo do Mn, este elemento é essencial para o desenvolvimento da cultura, sendo importante na mitigação de estresses oxidativos e indispensável para atingir altas produtividades, sendo o fornecimento do nutriente via foliar uma boa opção.
Neste sentido, a aplicação do Mn junto com o glifosato é uma alternativa interessante, não como tentativa de compensar o mito da complexação, mas sim para aproveitar operações mecanizadas que já devem ser feitas, buscando reduzir custos.
Misturas de tanque: reduzir custos, mantendo a eficiência de aplicação
Embora não haja interações no meio intracelular, o glifosato continua sendo capaz de complexar o Mn2+ em soluções aquosas, sendo estas espécies altamente reativas em misturas de tanque. Neste contexto, algumas estratégias devem ser tomadas para driblar esta situação e evitar perdas.
As fontes importam na interação do manganês e glifosato
Um estudo conduzido pelo Laboratório de Instrumentação Nuclear (CENA/USP) testou 4 fontes de Mn em misturas de tanque com glifosato, bem como a eficiência destas misturas no fornecimento de Mn para a soja RR. As fontes utilizadas foram sulfato de Mn (MnSO4), carbonato de Mn (MnCO3), fosfito de Mn (MnHPO3) e Mn quelatizado com ácido etilenodiaminotetracético (Mn-EDTA).
Os resultados mostraram que misturas de MnSO4 + glifosato podem causar perdas de até 30% do Mn e do glifosato no tanque de pulverização, devido à formação de complexos pouco solúveis que precipitam com uma razão molar Mn:Glifosato de 2:1. Essas perdas refletem em diminuição na eficiência do fornecimento do Mn para a soja (Figura 3) e no controle de plantas daninhas pelo glifosato, como constatado por Bernards et al. (2005).
O MnCO3 utilizado neste trabalho consistia em um pó com partículas nanométricas (80 – 100 nm), suspenso em água, sem estabilizantes. Neste caso, o MnCO3 não reagiu quimicamente com o glifosato, mas precipitou em sua totalidade por ser pouco solúvel, mostrando-se como uma fonte pouco eficiente para o fornecimento de Mn via foliar (Figura 4).
Provavelmente devido ao seu pH ácido (em torno de 1,7), a solução de fosfito de Mn não reagiu com o glifosato na mistura de tanque, porém esta combinação reduziu a eficiência no fornecimento de Mn para a soja. Das fontes de manganês avaliadas, a única que não reagiu e não teve sua eficiência afetada pela mistura com o glifosato foi o Mn-EDTA (Figura 5).
Influência do pH da mistura
O controle do pH das misturas no tanque de pulverização é importante para garantir a ação adequada do glifosato, e pode evitar reações indesejadas de complexação do Mn. Na imagem a seguir observa-se a condutividade elétrica e do pH das fontes de Mn, antes e após a mistura do glifosato.
O Mn quelatizado não reage pois o EDTA tem força de ligação maior que a molécula de glifosato. No caso do MnCO3 não há interação pois esta é uma fonte pouco solúvel, que não disponibiliza íons Mn2+ livres para reagirem com o glifosato em solução.
O caso do Mn-fosfito é interessante, pois é uma fonte solúvel de Mn2+, mas seu pH ácido não proporciona um meio favorável à complexação do Mn com o glifosato. Em pH ácido, a molécula desse herbicida está protonada, ou seja, os sítios de adsorção estão preenchidos com íons H+, não restando locais para a adsorção do Mn2+.
Neste sentido, diminuir o pH da mistura é uma alternativa para evitar complexação até mesmo quando se usa uma fonte como o MnSO4, mas também veremos que esta pode não ser a melhor opção.
Na imagem a seguir, observa-se as espécies de glifosato em função do pH (A), bem como a influência deste parâmetro na formação de precipitados em misturas de MnSO4 + glifosato (B). Observa-se que em pH 1 não há a formação de precipitados, ao contrário do que se observa em condições de pH entre 3 e 5. No caso de se elevar o pH para 7, a forma química do Mn é alterada.
No entanto, embora a redução do pH evite reações de complexação no tanque, a aplicação de soluções ácidas sobre a folha da soja pode ser danosa para a cultura. Na Figura 8, vemos alguns exemplos do efeito da aplicação de soluções ácidas sobre a epiderme da folha.
A olho nu, é possível observar sintomas de fitotoxidez e, analisando os danos em microscópio eletrônico de varredura, vemos que as células são severamente danificadas, tendo suas paredes e membranas colapsadas. Este efeito, ao mesmo tempo que pode promover a absorção rápida da solução aplicada, devido aos ferimentos causados, pode também causar estresses oxidativos e servir como porta de entrada para patógenos.
Considerações finais e recomendações
As histórias que cercam as interações entre o Mn e o glifosato compõem um bom roteiro de novela, com mentiras, verdades, polêmicas e reviravoltas. O maior desafio é desconstruir mitos, que podem ser usados erroneamente como justificativas para explicar fenômenos como o yellow flashing.
Diante dos fatos, vemos que não é necessário aumentar doses de Mn para compensar efeitos do glifosato, portanto, produtor e produtora, fiquem atentos quando receber alguma recomendação deste tipo.
A aplicação do Mn ainda é importante para se atingir altos rendimentos, e é interessante ser feita em conjunto com o glifosato, pensando na redução de operações mecanizadas. A Embrapa recomenda a aplicação de 350 g ha-1 de Mn ao longo do desenvolvimento da cultura, e é interessante parcelar esta aplicação em 3 vezes (em torno dos estádios V3, V7 e R1). No campo, observamos a utilização de doses menores, dependendo da fonte, sem prejuízos de produtividade.
Dentre as fontes, a mais eficiente para misturas é o Mn-EDTA, pois não reage no tanque de pulverização, não tem sua eficiência diminuída e mantém o pH da solução em um nível aceitável (em torno de 5), sem causar maiores danos às células da epiderme foliar.
Adquirir produtos de procedência e qualidade também é imprescindível, pois é importante que o Mn esteja completamente quelatizado. Geralmente uma boa fonte de Mn-EDTA possui em torno de 13% de Mn.
De qualquer forma, recomenda-se que seja feito teste de qualidade/compatibilidade antes de realizar as misturas de tanque, analisando cada lote de fertilizante adquirido.
Conheça o curso de Nutrição Avançada da Agroadvace:
Referências
BERNARDS, M. L. et al. Glyphosate interaction with manganese in tank mixtures and its effect on glyphosate absorption and translocation. Weed Science, v. 53, n. 6, p. 787–794, 2005.
BOTT, S. et al. Glyphosate-induced impairment of plant growth and micronutrient status in glyphosate-resistant soybean (Glycine max L.). Plant and Soil, v. 312, n. 1–2, p. 185–194, 2008.
DING, W. et al. Physiological responses of glyphosate-resistant and glyphosate-sensitive soybean to aminomethylphosphonic acid, a metabolite of glyphosate. Chemosphere, v. 83, n. 4, p. 593–598, 2011.
MACHADO, B. A. et al. X-ray Spectroscopy Fostering the Understanding of Foliar Uptake and Transport of Mn by Soybean (Glycine max L. Merril): Kinetics, Chemical Speciation, and Effects of Glyphosate. Journal of Agricultural and Food Chemistry, v. 67, n. 47, p. 13010–13020, 2019. DOI: 10.1021/acs.jafc.9b05630
REDDY, K. N.; RIMANDO, A. M.; DUKE, S. O. Aminomethylphosphonic acid, a metabolite of glyphosate, causes injury in glyphosate-treated, glyphosate-resistant soybean. Journal of Agricultural and Food Chemistry, v. 52, n. 16, p. 5139–5143, 2004.
Sobre a autora:
Bianca de Almeida Machado
- Engenheira Agrônoma (ESALQ/USP)
- GAPEana formada
- Mestra em Ciências (CENA/USP)
Uma resposta
Ótimo material! Parabéns a autora.