A cana-de-açúcar desempenha papel crucial na economia, na matriz energética e na sustentabilidade do Brasil, mas nem sempre foi assim.
Ao longo dos anos, o cultivo da cana-de-açúcar trouxe desafios importantes, como a emissão de gases do efeito estufa oriundo da queimada da cana, questões ambientais como o descarte de resíduos industriais e questões sociais complexas envolvendo os trabalhadores cortadores de cana.
Mas, à medida que o mundo se volta cada vez mais para soluções sustentáveis, o Brasil se tornou exemplo mundial de como o cultivo de cana-de-açúcar em larga escala pode ser compatível com práticas que respeitam o meio ambiente e as comunidades.
Este artigo explora as lições que o Brasil tem a oferecer ao mundo quando se trata de sustentabilidade na produção de cana-de-açúcar. Vamos destacar os desafios enfrentados, as soluções inovadoras implementadas e as políticas que incentivaram tais mudanças.
Acompanhe este artigo e descubra as 7 lições que o Brasil tem a oferecer quando se trata de cana-de-açúcar sustentável.
Boa leitura!
O que é sustentabilidade?
Sustentabilidade é um conceito fundamental que permeia toda a discussão sobre a cana-de-açúcar e seu cultivo.
De maneira geral, sustentabilidade refere-se à capacidade de atender às necessidades das gerações presentes sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atenderem às suas próprias necessidades. Isso implica equilibrar os aspectos econômicos, ambientais e sociais, de modo a garantir um desenvolvimento que seja duradouro, responsável e equitativo.
A cultura da cana-de-açúcar e a busca por sustentabilidade
A cana-de-açúcar é uma cultura que historicamente desempenhou um papel significativo na economia do Brasil. Sua trajetória evoluiu ao longo do tempo, adaptando-se às demandas e às mudanças globais.
- Em 1975, o governo brasileiro deu início ao programa pró alcool em resposta à crise do petróleo, reconhecendo a necessidade de encontrar alternativas econômicas aos combustíveis fósseis importados. A indústria canavieira respondeu a esse chamado, expandindo-se para atender à crescente demanda por etanol.
- Em 2003 houve a introdução de motores flexi-fuel, que podiam funcionar com etanol, gasolina e a importância do etanol como combustível alternativo se consolidou ainda mais! Nesse cenário, a cana-de-açúcar passou a desempenhar um papel fundamental na busca pela sustentabilidade, não apenas como uma alternativa econômica aos combustíveis fósseis, mas também devido à crescente conscientização ambiental.
- Atualmente, o etanol, derivado da cana-de-açúcar, representa cerca de 40% do combustível utilizado em veículos leves no Brasil e reduz em até 85% as emissões de gases de efeito estufa em comparação com a gasolina (Macedo et al. 2008). Isso torna a cana-de-açúcar uma opção crucial na busca por uma produção sustentável, à medida que enfrentamos o desafio global de reduzir as emissões de GEE e promover um futuro mais verde e sustentável.
No entanto, esse protagonismo trouxe consigo uma série de desafios, especialmente no que diz respeito à sustentabilidade no cultivo da cana-de-açúcar. Vejamos alguns dos principais:
- Desafios Ambientais
- Emissão de gases de efeito estufa (GEE): A queimada da cana, prática realizada para facilitar a colheita manual da cultura era responsável pela emissão para atmosfera uma grande quantidade de gases do efeito estufa, entre eles o CO (monóxido de carbono), o CH4 (metano) e o NO2 (óxido nitroso), além de aerossóis capazes de afetar a saúde humana.
- Pressão sobre ecossistemas: O cultivo extensivo de cana-de-açúcar pode levar à conversão de áreas naturais em áreas agrícolas, causando impactos ambientais negativos, como perda de biodiversidade e desmatamento. Além disso, a queimada da cana também era responsável pela diminuição da biodiversidade animal por meio da perda de habitat ou morte de animais que utilizam o canavial para nidificação ou alimentação.
- Desafios Sociais
- Condições de trabalho: Em muitas regiões produtoras de cana-de-açúcar, as condições de trabalho nas plantações não atendiam aos padrões de justiça social e trabalho digno.
- Impactos nas comunidades: O cultivo de cana-de-açúcar pode impactar as comunidades locais, afetando o acesso a recursos naturais e a qualidade de vida.
- Desafios Econômicos
- Flutuações de preços: A economia da cana-de-açúcar é afetada por flutuações de preços de commodities, o que pode representar um desafio para os agricultores e a indústria em geral.
- Competição global: A indústria da cana-de-açúcar enfrenta concorrência global, o que a obriga a buscar eficiência e qualidade para se manter competitiva.
Veremos a seguir como o Brasil abordou esses desafios e transformou a produção de cana-de-açúcar em um exemplo de sustentabilidade, adotando as estratégias, políticas e inovações que se tornaram lições valiosas para o mundo.
Lições do Brasil para o cultivo da cana-de-açúcar sustentável
Até pouco tempo atrás o foco dos produtores brasileiros de cana-de-açúcar era o aumento de produtividade e retorno econômico. No entando, na última década, as questões ambientais passaram a ser repensadas e melhoras, devido à importância do etanol para redução dos gases do efeito estufa. Dentre as medidas adotadas no país para o aumento da sustentatibilidade no cultivo da cana-de-açúcar, podemos citar:
- o uso de práticas mais conservacionistas do plantio à colheita,
- maior aproveitamento de resíduos,
- preservação da biodiversidade,
- prestação de serviços ambientais,
- adoção de economias circulares
- cumprimento das normas internas,
- compromissos externos em matéria de redução de gases do efeito de estufa.
Vejamos, a seguir, 7 lições que o Brasil tem a ensinar sobre a sustentabilidade no cultivo da cana-de-açúcar:
1. Cultivo e manejo do solo
A otimização das práticas de manejo do solo é essencial para promover a sustentabilidade no cultivo de cana-de-açúcar. Isso envolve considerar questões problemáticas como a:
- compactação do solo causada pelo tráfego de maquinário pesado,
- preservação da matéria orgânica do solo e
- redução das emissões de gases de efeito estufa relacionadas ao uso de máquinas e combustíveis.
E como o cultivo da cana-de-açúcar no Brasil trabalha sustentavelmente essas questões? Adotando práticas como:
- cultivo mínimo ou o não revolvimento do solo – essenciais para promover a conservação do solo e a redução das emissões de GEE,
- manutenção da palhado no solo após a colheita – papel importante no aumento do carbono orgânico do solo e na redução das emissões de CO2,
- controle de tráfego baseados em GPS e equipamentos autopilotos em tratores e colheitadeiras – permite a criação de desenhos de plantio que evitam a compactação do solo e minimizam a perda de carbono.
Portanto, ao adotar práticas como o cultivo mínimo, a manutenção da palhada e o controle de tráfego, o cultivo de cana-de-açúcar no Brasil demonstra seu compromisso com a sustentabilidade e a proteção do meio ambiente.
2. Sistema de Rotação de Culturas – Consorciação e Rotação Ocorrendo Simultaneamente (MEIOSI)
O sistema MEIOSI combina o plantio de cana-de-açúcar com outras culturas, como leguminosas, adubos verdes, soja ou amendoim (Figiura 1).
Ele permite o cultivo simultâneo de várias culturas e reduz os custos, ao mesmo tempo em que aumenta a qualidade das novas lavouras de cana-de-açúcar.
A rotação de culturas com leguminosas é recomendada tanto no sistema “MEIOSI” quanto em áreas tradicionais de cultivo de cana-de-açúcar.
Tal prática visa proteger o solo durante o período de chuvas, controlar as ervas daninhas, fornecer nutrientes, especialmente nitrogênio, uma vez que as leguminosas fixam nitrogênio atmosférico, e aumentar a matéria orgânica do solo.
3. Aproveitamento de resíduos como bagaço, vinhaça, palha e torta de filtro
Os resíduos gerados na produção e processamento de cana-de-açúcar, como bagaço, melaço, vinhaça, palhada e torta de filtro, desempenham um papel fundamental no sistema de produção, contribuindo para a economia circular.
O bagaço, subproduto do processamento da cana-de-açúcar, é usado para gerar bioeletricidade. O setor de açúcar e energia do Brasil depende do bagaço para energia, reduzindo as emissões de CO2 e proporcionando auto-suficiência energética durante a estação seca.
A vinhaça, que é um resíduo líquido resultante da produção de etanol, é aplicada no solo para adicionar nutrientes e matéria orgânica.
Ela está sendo cada vez mais aplicada como fertilizante líquido, proporcionando diversos benefícios, como uma melhor reciclagem de nutrientes, menor impacto ambiental e economia de custos. No entanto, a época de aplicação deve ser considerada para reduzir as emissões de N2O.
Tradicionalmente, a vinhaça é aplicada por aspersão por irrigação, mas recentemente tem sido aplicada de forma mais direcionada perto das fileiras de cana-de-açúcar (Figura 2).
Além de fornecer nutrientes como potássio, enxofre e cálcio, a vinhaça pode servir como um veículo para a aplicação de outros nutrientes, reduzindo a necessidade de operações adicionais e aumentando a área de reciclagem de nutrientes.
A palha da cana-de-açúcar, um resíduo gerado na fase agrícola, é preservada no campo para controlar a erosão, reduzir a evaporação da água, reciclar nutrientes e pode ser usada para a geração de bioeletricidade e produção de etanol de segunda geração.
A palhada também pode ser removido do campo tanto para a geração de bioeletricidade quanto para a produção de etanol de segunda geração (E2G).
A decisão de remover ou quanto remover da palha para a produção de energia deve ser equilibrada com os benefícios da preservação da palha, incluindo o aumento dos estoques de carbono no solo.
Não há consenso sobre a quantidade de palha que pode ser removida sem prejudicar a qualidade do solo e o rendimento da cana-de-açúcar, mas deixar pelo menos 7 toneladas de palha por hectare parece ser suficiente para manter a maioria dos benefícios ambientais da preservação da palha.
4. Adubação da cana-de-açúcar com fertilizantes orgânicos, organominerais e fertilizantes especiais
Fertilizantes orgânicos, fertilizantes organominerais, fertilizantes especiais revestidos com polímeros ou micronutrientes e bioestimulantes são usados no cultivo da cana-de-açúcar para reduzir impactos ambientais e melhorar a fertilidade do solo.
Alguns pridutores utilizam fontes orgânicas, como esterco de aves, para enriquecer o solo.
Os fertilizantes organominerais, que combinam matéria orgânica com minerais, podem ter vantagens em termos de eficiência e liberação lenta de nutrientes.
O uso de biostimulantes também pode promover crescimento, resistência a estresses e eficiência no uso de nutrientes nos canaviais.
Apesar de amplamente utilizados a campo, a eficácia desses produtos pode variar, e mais pesquisas são necessárias para determinar sua utilidade na agricultura de cana-de-açúcar.
5. Interação entre microrganismos e a cana-de-açúcar
Nos últimos anos, houve avanços significativos no conhecimento sobre a microbiologia do solo e suas interações com a nutrição da cana-de-açúcar.
Algumas bactérias, como Azospirillum amazonense, Azospirillum seropedicae, Azospirillum rubrisubalbicans, Gluconacetobacter diazotrophicus e Burkholderia tropica, foram identificadas como envolvidas na Fixação Biológica de Nitrogênio (FBN) da cana-de-açúcar.
Estimou-se que variedades de cana-de-açúcar podem fixar cerca de 40 kg de nitrogênio por hectare por ano. Embora inoculantes de microrganismos fixadores de nitrogênio tenham sido introduzidos no mercado, a evidência de que essas bactérias fornecem quantidades significativas de nitrogênio à planta de cana-de-açúcar ainda é limitada.
A inoculação com microrganismos promotores de crescimento e fixadores de nitrogênio, bem como fungos micorrízicos, tem sido estudada como uma maneira de aumentar a eficiência dos sistemas de produção e reduzir o uso de fertilizantes, especialmente de nitrogênio e fósforo.
A simbiose micorrízica contribui para o desenvolvimento da planta, especialmente em relação à nutrição de fósforo e absorção de outros nutrientes.
Além disso, o microbioma da cana-de-açúcar abriga vários microrganismos benéficos, incluindo bactérias endofíticas e rizobactérias promotoras de crescimento, que desempenham papéis cruciais no ciclo de nitrogênio do solo e nas emissões de gases de efeito estufa.
6. Melhoramento genético em busca de novas variedades
O Brasil possui atualmente três programas de melhoramento de cana-de-açúcar para a produção de açúcar e etanol: RIDESA, CTC e IAC. Um quarto programa se concentra especificamente em cana-de-açúcar para energia e é conduzido pela GranBio.
Esses programas buscam variedades resistentes a pragas, tolerantes à seca e com alto potencial de produção de biomassa.
Os programas de melhoramento genético de cana-de-açúcar têm desenvolvido variedades mais resistentes e adaptadas a métodos de plantio e colheita mecânicos.
A introdução de variedades transgênicas resistentes a pragas, como a variedade CTC20Bt, por exemplo, ajudou a reduzir perdas econômicas e custos de produção.
Além disso, com o desenvolvimento da tecnologia para produção de etanol a partir de materiais lignocelulósicos (etanol de segunda geração), houve um foco em variedades ricas em fibras, chamadas de “cana energia.” Essas variedades são mais adequadas para a produção de etanol de segunda geração, eletricidade ou biogás.
A seleção de variedades adequadas para as condições específicas de crescimento é um fator importante para maximizar o rendimento – importante componente do fator econômico da sustentabilidade.
7. Políticas Públicas e Sustentabilidade
O Protocolo Ambiental, assinado em 2007 pelo Governo do Estado de São Paulo em parceria com o setor sucroenergético, teve como objetivo eliminar a queima da cana-de-açúcar antes da colheita, uma prática com grandes impactos ambientais. Isso reduziu significativamente a queima da cana-de-açúcar em São Paulo.
Posteriormente, em 2017, o Protocolo Etanol Mais Verde foi estabelecido para consolidar práticas de desenvolvimento sustentável no setor sucroenergético. O protocolo concentra-se em boas práticas, como cumprimento do Código Florestal, conservação do solo, conservação e reuso da água, proteção da fauna, preservação florestal e prevenção de incêndios.
Também em 2017, o governo brasileiro introduziu uma política pública chamada RenovaBio para promover a produção de bioenergia com as menores emissões de gases de efeito estufa (GEE) e incentivar os produtores a melhorar a eficiência nos processos agrícolas e industriais.
Até 2021, o RenovaBio já certificou aproximadamente 355 usinas de etanol, de um total de 395 usinas em operação no Brasil. A política está alinhada com os compromissos do Brasil no âmbito do Acordo de Paris para reduzir as emissões de GEE em 43% até 2030, em comparação com os níveis de 2005.
A política incentiva os produtores a:
- evitar a produção de biocombustíveis em áreas recentemente desmatadas,
- seguir regras de zoneamento estabelecidas e
- cumprir o código florestal.
Os produtores são recompensados pela redução das emissões de GEE, e órgãos independentes de certificação calculam o Escore de Eficiência Energético-Ambiental, que quantifica as emissões de GEE relacionadas à produção de biocombustíveis em comparação com referências de combustíveis fósseis.
Esse escore é a base para os Créditos de Descarbonização (CBIOs), que representam 1 tonelada de emissões de CO2 equivalente evitadas. Os CBIOs são ativos financeiros negociados na bolsa de valores.
O RenovaBio teve um impacto significativo, evitando 40,24 milhões de toneladas de emissões de CO2eq de 2020 até setembro de 2021. A produção de etanol contribuiu com 85,3% dessas economias. A política contribui de maneira significativa para as metas de desenvolvimento sustentável do Brasil e ajuda a reduzir as emissões de GEE.
Conclusões
O Brasil desenvolveu ao longo dos anos um sistema sustentável no cultivo da cana-de-açúcar.
Lições que guiaram esse processo foram a diversificação e integração de culturas, o uso eficiente de recursos hídricos, a adoção de tecnologia avançada, a gestão responsável de produtos químicos, o compromisso com a conservação ambiental e a valorização da pesquisa e inovação.
O desafio agora é manter a produção sustentável, expandindo-a de forma responsável e dentro dos limites de respeito ao solo, à água, à atmosfera e à biodiversidade.
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Referências
MACEDO, I.C.; SEABRA, J.E.A.; SILVA, J.E.A.R. Greenhouse gases emissions in the production and use of ethanol from sugarcane in Brazil: the 2005/2006 averages and a prediction for 2020. Biomass Bioenergy. v. 32, p. 582–595. 2008. DOI: 10.1016/j. biombioe.2007.12.006.
ROSSETO, R.; RAMOS, N.P.; PIRES, R.C.; XAVIER, M.A.; CANTARELLA, H.; LANDELL, M.G.A. Sustainability in sugarcane supply chain in Brazil: issues and way forward. Sugar Tech, v. 24, p. 941-966, 2022. DOI: 10.1007/s12355-022-01170-y
Sobre a autora:
Beatriz Nastaro Boschiero
Especialista em MKT de Conteúdo na Agroadvance
- Pós-doutora pelo CTBE/CNPEM e CENA/USP
- Mestra e Doutora em Solos e Nutrição de Plantas (ESALQ/USP)
- Engenheira Agrônoma (UNESP/Botucatu)