A compatibilidade da mistura de produtos fitossanitários em tanque de pulverização é uma das dúvidas mais comuns no campo e que ainda carece de estudos e aplicações para melhor entendimento.
Recentemente, uma nova questão foi levantada quanto à mistura entre herbicidas e fungicidas, principalmente devido à aplicação de fungicidas nos primeiros estágios vegetativos da soja (“aplicação zero”). Afinal, o que se sabe sobre o assunto? Há algum efeito na mistura desses produtos?
Aplicação Zero
Uma das práticas que têm sido aplicadas nas últimas safras de soja no Brasil é a chamada “Aplicação Zero”. Nessa aplicação, realizada previamente à primeira aplicação de fungicida que é a considerada principal no manejo de doenças na cultura da soja, busca-se o controle preventivo de doenças foliares fazendo uso de fungicidas em estádios mais precoces, ainda no estádio de desenvolvimento vegetativo.
Preconiza-se a utilização de fungicidas com residual mais curto e economicamente viáveis para a prevenção de doenças e redução de inóculo (EQUIPE MAIS SOJA, 2019).
O período de aplicação coincide com a aplicação de herbicidas para o manejo de plantas daninhas na cultura, momento em que não há fechamento das entrelinhas e possibilita melhor eficácia de controle das planta daninhas e redução da competição com a soja.
Desta forma, tem-se utilizado com frequência nessa aplicação a mistura dos fungicidas com os herbicidas, em especial o glifosato. Aí surge a dúvida: há compatibilidade entre esses produtos fitossanitários? Primeiro é importante entender o que é a mistura de produtos em tanque e como essa mistura pode afetar a calda de aplicação e eficiência do controle.
Mistura em tanque
A mistura em tanque é uma prática comum há muitos anos no Brasil, na qual busca-se otimizar a capacidade operacional e reduzir os custos da aplicação a partir da associação de diferentes produtos fitossanitários, fertilizantes, entre outros produtos, no tanque de pulverização momentos antes da aplicação (RAETANO, CHECHETTO; 2019).
Essa prática foi regulamentada apenas em 2018 (Instrução Normativa no 40, 11 de outubro de 2018) através do Acordo de Cooperação Técnica firmado entre a Secretaria de Defesa Agropecuária – SDA/MAPA e o Conselho Federal de Engenharia e Agronomia – CONFEA (BRASIL, 2018).
Contudo essa prática era amplamente desempenhada no Brasil muito antes dessa regulamentação, muitas vezes com misturas complexas de produtos (GAZZIERO, 2015).
Em termos práticos, muitas das aplicações para manejo de pragas, doenças e fertilizantes foliares coincidem, sendo mais conveniente a associação dos produtos em uma só aplicação.
Desta forma, reduz-se o custo e tempo gasto nas operações, o trânsito de máquinas nas lavouras e com isso é possível haver uma economia de combustível, água e até no número de máquinas necessárias (GUIMARÃES, 2014), justificando sua ampla utilização. Segundo Gazziero (2015), 97% das aplicações continham pelo menos mais de um produto em mistura no tanque de aplicação.
Apesar da utilização de fungicidas na aplicação zero estar crescendo no Brasil, a mistura de herbicidas e fungicidas já era comum há algum tempo. Na mesma pesquisa realizada por Gazziero (2015), 86% das aplicações de glifosato em soja eram realizadas em associação com fungicidas, inseticidas ou outros herbicidas.
Contudo, ressalta-se que antes de realizar qualquer mistura, é aconselhável que sejam realizados estudos prévios para determinar se os produtos possuem compatibilidade e se a mistura não prejudicará a eficácia de nenhum dos componentes.
Compatibilidade de calda
A compatibilidade de calda, portanto, é o que vai definir se determinados produtos podem ou não serem usados em associação no tanque de pulverização. Existem dois fatores principais a serem analisados: a compatibilidade física e a compatibilidade química.
A incompatibilidade física da mistura pode causar perda da estabilidade da calda de pulverização, levando a formação de precipitados, complexação e separação de fases. Essas alterações podem influenciar no pH, condutividade elétrica e na tensão superficial da calda (PETTER et al., 2013) (Figura 1).
A degradação dos ingredientes ativos pode ocorrer devido a reações de oxidação, hidrólise e encapsulamento (RAETANO; CHECHETTO, 2019).
A compatibilidade química está atrelada diretamente à eficácia do produto, sendo que as misturas podem apresentar reações químicas
- i) aditivas, na qual a mistura dos produtos produz resultado semelhante à adição dos resultados obtidos com a aplicação dos produtos separadamente;
- ii) sinergística, na qual a interação entre os produtos produz resultado superior ao obtido com a aplicação de cada produto separadamente; e
- iii) antagonística, na qual o resultado obtido com a interação dos produtos é inferior ao obtido com a aplicação de cada produto separadamente (PETTER et al., 2012).
Figura 1. Exemplo de incompatibilidade nas misturas de produtos fitossanitários, apresentando clara separação de fases e formação de precipitados.
Segundo Petter et al. (2012), as “interações físicas” são normalmente associadas às substâncias inertes da calda, como a formulação do produto, enquanto que as “interações químicas” relacionam-se à molécula do produto fitossanitário.
O autor ressalta ainda que essa interação se dá inicialmente pelas características físico-químicas da calda (pH, solubilidade, pKa, Kow) e, a partir disso, às alterações químicas, influenciando na eficácia do produto.
Para Raetano e Chechetto (2019), as incompatibilidades podem acontecer devido as características físicas e químicas dos produtos em mistura, sistema e intensidade de agitação, temperatura da água, taxa de aplicação e do pH da calda.
No caso da mistura entre fungicidas e herbicidas na aplicação zero, é possível que sejam encontrados problemas com a incompatibilidade física de determinados produtos, principalmente devido à formulação de cada produto, presença de outros produtos que prejudiquem a dissolução ou devido à ordem incorreta de adição no tanque.
No entanto, o principal entrave possivelmente poderia estar no pH da solução da calda, seja ela devido à possibilidade disso gerar uma incompatibilidade física, quanto principalmente a alteração do nível de pH à um nível que não seja adequado ao perfeito funcionamento de um dos produtos fitossanitários.
O pH (potencial hidrogeniônico) é uma medida do grau de alcalinidade ou acidez de uma solução e esse valor pode afetar severamente a absorção, adsorção, longevidade e disponibilidade das moléculas dos produtos fitossanitários (SCHILDER et al., 2008).
Efeito do pH na mistura em tanque
Cada produto possui uma faixa de pH considerada ideal para o seu funcionamento, isto é, o pH que possibilita melhor eficácia, menor taxa de hidrólise e que auxilie na absorção dos ingredientes ativos na planta.
Segundo Petter et al. (2012), quando as moléculas dos produtos estão em solução, ocorre dissociação em íons de carga positiva ou negativa com capacidade de se ligar a outros íons nessa mesma solução. É nesse ponto que o pH pode atuar, interferindo na “resultante elétrica” da dissociação dos herbicidas.
Segundo o autor, com o aumento do pH, os herbicidas normalmente apresentam um aumento nos íons de carga negativa (ânions), levando as moléculas carregadas negativamente a se ligarem a moléculas de carga positiva (e.g. carbonatos).
Portanto, percebe-se que o pH influencia grandemente na eficácia dos produtos e conhecer e manter o nível ideal favorecerá a aplicação. Em geral, inseticidas e fungicidas apresentam pH entre 5,0 e 7,0, enquanto que herbicidas apresentam pH entre 3,0 e 5,0 (CUNHA et al., 2017).
Na literatura, correlaciona-se essas mesmas faixas de valores como sendo as faixas ideias de pH para a melhor eficácia dos produtos. É possível consultar uma extensa lista de produtos fitossanitários e a faixa ideal de pH para cada um deles, disponibilizada pela Michigan State University (SCHILDER, 2008).
Destaca-se que existem poucos trabalhos avaliando a associação de fungicidas e herbicidas, carecendo de informações relevantes do assunto. Além disso, o efeito do pH pode não só afetar o controle da planta daninha pelo herbicida como do fungicida utilizado.
Recentemente, Grigolli et al. (2018) reportou a influência do pH da calda no controle da ferrugem asiática da soja pelos principais fungicidas utilizados atualmente. Nesse trabalho, foi demonstrado que o pH de 5,0 a 7,0 promoveu melhor controle da doença e maior produtividade da cultura.
A maior severidade da doença foi encontrada com aplicação em pH 3,0; 4,0 e 8,4. Dependendo da formulação do glifosato, níveis de pH de 3,0 a 4,0 são facilmente alcançados, podendo, portanto, afetar a eficácia do fungicida.
Entretanto, é necessário saber primeiramente qual o pH da mistura entre o glifosato e os fungicidas, já que pode haver certa neutralização com a associação dos produtos.
Glifosato
No caso do glifosato, é comum encontrar referência afirmando que o nível ideal de pH é entre 3,0 e 4,0. Portanto, é possível que a mistura com os fungicidas, caso haja uma elevação excessiva de pH, prejudique o controle das plantas daninhas.
Da mesma forma, caso o glifosato reduza o pH da solução, pode haver certos prejuízos no controle das doenças. Entretanto, é necessário que estudos mais conclusivos possam ser conduzidos para analisar qual a grandeza dessa interferência e se essa alteração no nível de controle é satisfatória do ponto de vista econômico e ambiental.
Ou seja, é possível que a alterção na eficácia dos produtos seja mínima, justificando sua utilização e aproveitando os benefícios já comentados a respeito da mistura em tanque.
Além disso, existem trabalhos demonstrando que a eficiência do glifosato no controle de plantas daninhas (Digitaria horizontalis, capim-colchão) não diferiu com pH de 3,5 a 6,5. Isso demonstra que essa variação no pH pode não exercer efeitos significantes quanto à eficácia de controle (CUNHA et al., 2020).
Nesse trabalho, foram avaliadas duas formulações do herbicida (sal de amônio e sal de potássio), que podem apresentar reações distintas quanto à variação do pH.
Ademais, não devem ser descartadas as chances de incompatibilidade física que também podem prejudicar o funcionamento dos produtos e a aplicação em si.
Para isso, deve-se atentar a diversos fatores, como a formulação de calda dos produtos, ordem ou sequência que são adicionados ao tanque de pulverização e aos demais produtos que também possam ser adicionados à calda.
Não há uma regra geral que determine se os produtos serão ou não compatíveis, mas já encontram-se diversos materiais que dão um indicativo da compatibilidade de diversos produtos utilizados na agricultura (AgroDBO, 2021).
Por outro lado, outra alternativa interessante é um teste rápido que pode ser conduzido para analisar se existe alguma incompatibilidade física dos produtos e, se existente, serão facilmente visualizados.
Esse teste, descrito por Raetano e Chechetto (2019), é conhecido como o “teste da garrafa” e deve ser realizado previamente à mistura em tanque, principalmente em misturas complexas de produtos (Figura 2).
Em resumo, esse teste propõe a mistura dos produtos na mesma proporção que seriam colocadas no tanque, mas em escala reduzida, como em uma garrafa PET (2 L), balde ou jarra.
Deve-se simular exatamente a mesma sequência de mistura, quantidade proporcional de água no momento da mistura e utilizar a água da mesma fonte que será utilizada no tanque de pulverização. Dessa forma, pode-se reproduzir os efeitos da mistura e visualizar se haverá alguma incompatibilidade de calda.
Figura 2. Condução do “teste da garrafa” com a simulação da mistura dos produtos em garrafa PET (2L) (A) e avaliação visual dos efeitos da mistura quanto à compatibilidade da calda (B).
Considerações finais
Portanto, mais estudos são necessários para determinar o desfecho dessa questão, mas fica claro que é necessário atenção para as misturas para garantir o máximo de eficácia possível de todos os produtos.
No geral, acredita-se que a variação do pH da calda com a mistura entre herbicidas e fungicidas possa não apresentar efeitos significativos no controle. Ressalta-se também que o problema de incompatibilidade pode ser minimizado, por exemplo, com o uso de adjuvantes e reguladores de pH de calda.
Por outro lado, outra práticas comuns como a redução excessiva da taxa de aplicação também devem ser levados em consideração quanto às misturas em tanque, uma vez que a redução na taxa de aplicação acarreta a maior concentração dos produtos fitossanitários, aumentando a chance de incompatibilidade.
Por fim, recomenda-se também utilizar o maior volume de água possível no tanque no momento da realização da mistura, reduzindo a chance de incompatibilidade.
REFERÊNCIAS
AGRODBO. Tabelas de compatibilidades e incompatibilidades físico-químicas de misturas em tanque de agroquímicos e fertilizantes foliares. Portal DBO – Tecnologia, Produção & Mercado, 2021. Disponível em: https://www.portaldbo.com.br/tabela-de-compatibilidade/. Acessado em: 19 de janeiro de 2021.
BRASIL. (2018) Instrução Normativa nº 40, de 11 de outubro de 2018. Instrução Normativa Nº 40.
CUNHA, J. P. A. R. D.; ALVES, G. S.; MARQUES, R. S. Tensão superficial, potencial hidrogeniônico e condutividade elétrica de caldas de produtos fitossanitários e adjuvantes. Revista Ciência Agronômica, v. 48, n. 2, p. 261-270, 2017.
CUNHA, J. P. A. R. D.; PALMA, R. P.; OLIVEIRA, A. C. D.; MARQUES, M. G.; ALVARENGA, C. B. D. Water hardness and pH in the effectiveness of glyphosate formulations. Engenharia Agrícola, v. 40, n. 4, p. 555-560, 2020.
EQUIPE MAIS SOJA. Aplicação Zero: detalhes técnicos. Mais Soja, 2019. Disponível em: https://maissoja.com.br/aplicacao-zero-detalhes-tecnicos/. Acessado em 19 de janeiro de 2021.
GAZZIERO, D. L. P. Misturas de agrotóxicos em tanque nas propriedades agrícolas do Brasil. Planta Daninha, v. 33, n. 1, p. 83-92, 2015.
GUIMARÃES, G.L Principais fatores comerciais condicionantes da disponibilidade de produtos isolados e em misturas. In: Congresso Brasileiro da Ciência das Plantas Daninhas, 29, Gramado. Palestra Gramado: CD RO, 2014.
GRIGOLLI, J.F.J.; KUBOTA GRIGOLLI, M. M. ; GITTI, D. C. ; LOURENÇÃO, A. L. F. ; MELOTTO, A. M. ; BEZERRA, A. R. G. Eficácia de fungicidas químicos em diferentes pH de calda no controle de Phakopsora pachyrhizi na cultura da soja. In: VIII Congresso Brasileiro de Soja, 2018, Goiânia. Anais do VIII Congresso Brasileiro de Soja. Brasília: Embrapa, 2018. p. 445-447.
PETTER, F. A.; SEGATE, D.; PACHECO, L. P.; ALMEIDA, F. A.; ALCÂNTARA NETO F. Incompatibilidade física de misturas entre herbicidas e inseticidas. Planta Daninha, v. 30, p. 449-457, 2012.
PETTER, F. A.; SEGATE, D.; ALMEIDA, F. A.; ALCÂNTARA NETO, F.; PACHECO, L. P. Incompatibilidade física de misturas entre inseticidas e fungicidas. Comunicata Scientiae, v. 4, p. 129-138, 2013.
RAETANO, C. G.; CHECHETTO, R. G. Misturas em tanque. In: ANTUNIASSI, U.R.; BOLLER, W. Tecnologia de Aplicação para Culturas Anuais. 2 ed. Passo fundo: Aldeia Norte, p. 49-86, 2019.
SCHILDER, A. Effect of water pH on the stability of pesticides. Michigan State University – MSU Extension, 2008. Disponível em: https://www.canr.msu.edu/news/effect_of_water_ph_on_the_stability_of_pesticides. Acessado em 19 de janeiro de 2021.
Este texto é opinião do autor, não reflete necessariamente opinião da Agroadvance.
Respostas de 5
muito bom gostei imenso do tema e dos esclarecimento.
olha escrevo a partir de Angola estou a frequentar o mestrado em proteção de plantas
boa noite, José Carlos, posso aplicar flex com um triazol na soja, e qua seria a dose mais segura do flex ? desde já agradeço
Bom dia posso aplicar Glifosato com o fungicida Fusão na lavoura de soja?
Bom dia, Posso aplicar uma associação de Fungicidas (Cercobim+Nativo+Recop) no mesmo tanque de pulverização (Drone)
Olá Isac,
Para garantir a eficácia e segurança, recomendo que entre em contato com o engenheiro agrônomo que indicou e comercializou os produtos. Ele poderá fornecer orientações específicas para a mistura desses fungicidas, considerando as condições específicas de aplicação por drone.